A viagem a Partaloa
Em setembro de 1987 estávamos na Suécia para visitar novamente a fábrica da Scania. Além da minha esposa, Cristina, e nossos filhos Daniela, Rodrigo e Gustavo, nos acompanhavam a cunhada, Sônia, o marido, Anízio Janene, e as filhas Cristiane e Carolina. Nessa viagem também estava Tio Roque, cunhado de Dona Amélia, minha mãe.
Na Suécia, além da Scania, conhecemos a Josam, indústria de alinhadores de eixos e chassis na cidade de Örebro, onde adquirimos alguns equipamentos, utilizados até hoje em nossas oficinas. Saindo de Estocolmo, nos deslocamos até a Dinamarca e depois para a Alemanha para rever os amigos Bernard Krone que vivia em Spelle e Heinz Dinardt em Mineshagen. De lá, retornamos de carro a Paris, onde embarcamos as crianças e Tio Roque para o Brasil.
Agora sim, daríamos início a uma nova empreitada. Uma viagem às minhas origens. Cristina e eu, acompanhados de Sônia e Anízio, tomamos o trem para Barcelona onde alugamos um carro e seguimos rumo à Costa do Mediterrâneo.
Estávamos ali para cumprir um objetivo: conhecer o lugar onde meu pai nasceu e viveu os primeiros anos de sua vida. Minha curiosidade era enorme, especialmente porque ele resistia à ideia de eu conhecer o local. Ele achava que nos decepcionaríamos com a vila onde vivera a infância.
Durante o trajeto parávamos para pernoitar em hotéis e seguíamos viagem durante o dia, para apreciar ainda mais o passeio. E assim, nossa expedição seguiu tranquilamente. A rodovia era boa e a conversa animada ajudou a percorrer os quilômetros da autoestrada no sul da Espanha. Em determinado ponto tomamos a direção rumo à província de Almeria. À medida que vencíamos o trecho, aumentava minha expectativa.
Passamos pela bela província de Murcia e percorremos mais de 200 km até chegar a Almeria. De lá, tivemos mais uma hora de viagem, passando por Fines e Albox, pequenas cidades, até chegar à aldeia de Partaloa.
O ar fresco ajudava a quebrar a aridez da paisagem. Da janela do carro podia se ver o pálido céu azul, que perfazia entre montanhas e vales pedregosos.
À distância, avistei o portal que indicava a entrada do vilarejo. Partaloa era um pueblo rústico, totalmente árido. Subimos com o carro pela única calle do povoado. As casas simples contornavam a rua vazia. Devia ser a hora da siesta, pois não havia uma viva alma no local.
– Onde vou procurar? – pensei.
De repente surge um senhor, não sei de onde, do outro lado da rua. Ele ajeita a pequena carrocinha feita de madeira. Está todo sujo, voltando do trabalho no campo. Vem pela calçadinha estreita em nossa direção. Eu o abordo:
– Olá senhor, buenas tardes. Somos do Brasil, sou filho de José Lopez Lopez, hijo de Pedro Lopez Molina e Maria Lopez Rodrigues, que partiram para o Brasil em 1920 com seus filhos. Estou aqui para conhecer Partaloa e se tenho tias vivas...
Espantado, o senhor ouviu toda minha explicação e então balbuciou:
– Primo!
Surpresa e emoção tomaram conta de mim. A primeira pessoa que vi em Partaloa era justamente meu primo Pedro Moreno Reche. Em meio a lágrimas e abraços ele pediu que todos o acompanhassem.
– Vengam a mi casa.
O primo Pedro Reche cultivava hortaliças. Hoje os vales de Almeria são irrigados e a região é responsável pela produção e distribuição de frutas e hortaliças para toda a Espanha. Mas nos anos 1980, durante nossa passagem, Partaloa era um ressequido vilarejo, provido apenas por uma rua e aproximadamente 500 moradores.
A casa do primo ficava perto de onde paramos. Enquanto tomava banho e vestia roupas limpas, conversamos com sua esposa e a sogra. A sogra de Pedro Reche, assim como muitas outras mulheres da região, se vestia de preto como as viúvas da Guerra Civil Espanhola, acontecimento traumático que deixou profundas marcas no país nos anos 1930, seguido pelos difíceis tempos do caudilho Francisco Franco, ditador que estagnou o desenvolvimento e empobreceu a Espanha durante décadas.
De banho tomado, Pedro Reche nos convidou para tomarmos una cerveza no único bar de Partaloa. Seguimos a pé pela rua vazia, até chegarmos a uma portinha, que dava acesso ao bar.
O boteco era um cômodo sem janelas, com mesinhas espalhadas por todo o ambiente. As paredes eram de pedras, aliás, uma eficiente alternativa de isolamento térmico, muito utilizado nos imóveis daquela região agreste.
Ali bebemos uma boa cerveja, acompanhada de tremoço e salames artesanais. Com o tempo, o bar ficou apinhado de curiosos querendo ver os brasileiros, uma atração naquelas terras distantes.
O encontro com parentes longínquos deixou-me muito emocionado. Estava presenciando fatos e sensações que até então só conhecia através de meu pai. A conversa seguia animada, quando um homem se aproxima, me fita insistentemente e dispara:
– Pedro! O que haces aqui?
Era Miguel El Carrasco, mais um espanhol que tinha vivido no Brasil na tentativa de ter uma vida melhor. Como meu pai fora nomeado vice-cônsul da Espanha no Norte do Paraná, Miguel não saía da nossa casa. Ele tinha esperanças de que meu pai o ajudasse a voltar para a Espanha, coisa que acabou acontecendo. Demorou um pouco, mas papai conseguiu recursos para pagar a passagem e repatriá-lo.
– Olha Miguel, estou aqui para conhecer o local onde meu pai nasceu. Não o pueblo, mas a casa onde ele viveu – exformacao.htmluei.
Miguel respondeu:
– Não vale a pena, Pedro. A casa não existe mais, só tem ruínas lá. É distante 5 km, num vale na encosta, lá do outro lado.
– Miguel, é melhor você me levar lá ou terei que sair procurando por aí. Eu vim aqui para isso.
Cristina mediou:
– Miguel, atenda o Pedro porque ele não vai desistir.
Vencido, Miguel concordou:
– Bueno, entonces vamos.
Saímos do bar e pegamos o carro. Fomos pelo topo da colina, seguindo pela estradinha de terra que serpenteava a região montanhosa de Partaloa. Em certo ponto, Miguel disparou:
– Pare aqui.
Desembarcamos. Assim que saiu, Miguel olhou para mim e em seguida apontou lá prá baixo. Logo adiante, na encosta da montanha, em meio à aridez da região de Almeria, um amontoado de pedras se avolumava aos pés da colina denunciando que ali, em tempos passados, havia uma casa, um lar que um dia abrigara a família Lopez Lopez. Alguns restos de paredes de pedra ainda teimavam em permanecer em pé.
– Vocês esperem aqui que eu vou descer – ordenei à Cristina, Sônia, Anízio e Miguel.
O terreno coberto de pedras soltas não me intimidou. Desci até chegar bem pertinho. Sentei em uma pedra e pude finalmente apreciar aquela imagem. Na paisagem seca, com a vegetação definhada pelo sol e o chão trincado pela falta de chuva, pude ver e entender como meu pai viveu. O cenário era desolador. Naquele momento, compreendi a resistência dele para que eu não conhecesse aquele lugar.
Mas ao invés de decepção, sentimento que meu pai temia que viesse à tona assim que eu visse o local onde ele nascera, o que senti foi um grande orgulho.
Os escombros onde outrora foram o berço de papai me fizeram compreender como aquele ambiente rústico, duro e seco, havia moldado o sólido temperamento do senhor José Lopez Lopez.
A aridez quase hostil de Partaloa fez daquele pequeno campesino um homem de valor, cuja dignidade brotou sem uma gota de chuva, regada apenas pelo sangue mouro que corria em suas veias. Foi ali, em meio às pedras, pastoreando as ovelhas, que papai obteve uma força extraordinária para vencer os obstáculos e tornar-se um homem realizado em terras brasileiras.
Não sei bem quanto tempo fiquei ali sentado naquela pedra, olhando para a encosta. Compreendi então que a viagem havia se tornado um marco em minha vida. Enxerguei claramente as minhas raízes e assimilei aquele local como o começo de tudo. O começo da minha história.
De volta a Londrina, Cristina organizou um almoço e quando papai chegou em casa mostrei as fotos da viagem. Como sempre, ele desconversou, temendo que ficássemos abalados ao conhecer sua infância pobre. Anos antes, ele havia levado minha mãe para a Espanha e ela se assustou com a falta de saneamento e a precariedade com que viviam os moradores de Partaloa.
Mas agora, mostrando as fotos, eu descrevia animadamente as maravilhas do local, de como fomos bem recebidos por parentes distantes, pelo amigo Miguel El Carrasco e, especialmente, de como a vida havia melhorado para todos naquela região.
Ao ver meu entusiasmo, os olhos de papai ficaram marejados. Foi a primeira e única vez que o vi chorar. Para mim, as lágrimas que rolavam pelo rosto dele eram a redenção aos anos duros que vivera naquela terra árida e pobre. Ele olhou bem nos meus olhos e me abraçou.